Dezembro de 2024
- marianamachine
- Dec 5, 2024
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“É por causa desse tipo de gente que ainda estamos aqui, com inspiração para melhorar, enxugando as lágrimas, voltando a sorrir, pois o obscurantismo jamais matará o afeto e a esperança.” Fernando Gabeira
Muito ainda pra sentir, chorar, como se já nao estivesse intenso o suficiente. O ano de 2024 será inesquecível. Da maneira mais dolorida que uma mulher branca, classe média de São Paulo, nos seus 37 anos, pode lembrar.
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Iniciei o ano de 2024 triste. Estava em um relacionamento tóxico. Ambos se faziam mal, ambos se amparavam nessa dura convivencia. Foram 6 meses se machucando para perceber que algo estava errado. Não é amor aflorar o que há de pior um no outro. A relação acabou no dia da mentira e havia começado no ano anterior, num 11 de setembro. O rapaz era um americano infeliz com a cidade de Nova York que decidiu começar um novo capítulo de sua história no Brasil. Atribuía à mudança, sua melhora num quadro clinico que exigia cirurgia radical, como se o calor de nosso país fosse capaz de fechar feridas físicas, internas, em brasas. Sua frieza e nossa estupidez nao nos deixava ver que o problema é mais embaixo. A mudança que fechou as feridas dele, abriram novas em mim.
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Maio de 2024. Mudava para o terceiro endereço em menos de 6 meses. Após um período em Pipa, Rio Grande do Norte, decido voltar à Sao Paulo de onde saía no fim do carnaval daquele ano. Já era o fim de 2023 quando aluguei um studio minusculo de menos de 28m2 atras do Largo Santa Cecícilia, na ansia de, quem sabe, voltar a me sentir mais em casa - coisa que nunca senti em lugar algum pois minha familia sempre mudava de casa, escolas e cidade. Retornaram à Bauru na terceira idade, aonde vou algumas vezes por ano para visita-los mas declaro que aquele lugar me parece mais inospito do que nunca. Eles nao entendem como eu posso ser tão avessa à ideia de morar ali mas o que eles deveriam compreender é como se altera o endereço, a matricula, as coordenadas geograficas de alguem sem que isso mexa algo profundo dentro da gente. Nao tem como reparar, e nao há mal nisso. Somos frutos do meio , das condicoes de temperatura e pressão impostas pela vida. Essa força estranha que nos modela atraves de experiencias muito particulares.
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Me sinto exausta. Comecei a arrancar ervas daninhas do jardim. Me espanto como algumas raizes parecem pregadas em cimento, duras de sair, enquanto ouço Tom Zé no ouvido “quero ir minha gente, eu nao sou daqui, eu nao tenho nada, nada…”
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Sao 11h59 da manha de uma quinta-feira e me lembro que nessa mesma hora ontem eu sentava nesse mesmo sofa e falava em voz alta “eu nem sei pra quê que eu existo” - seja para o meu gato escutar, ou qualquer outro ser que pudesse estar me assistindo em segredo. A provação que tem sido sobreviver esse ano, transborda.
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Dar conta de algo envolve um se…
Dar-se conta de que…
No dar, conta-se algo.
Se diminui um aqui, aumenta-se um ali e assim a coisa vai.
É de uma natureza matemática e metafísica esse exercício de dar conta de algo que nos atravessa. Eu nunca entendi bem de exatas e sempre fico muito perplexa com as ideias por trás. Porque eu me perco nas ideias e devaneios com essa intensidade? Sentir o prazer bizarro do inusitado, do descobrir que sempre há muito mais por de tras de cada simbolo, teoria e pratica. Me fascina a paralizacao que a sensacao complexa de uma ideia pode exercer em mim. Nesse estado parece que a vida faz sentido e a equação a ser provada por a + b já aconteceu e o resultado portanto, é insuficiente, irrisório, uma ingenuidade.
Eu nao quero mais ter que provar nada que nao seja me sentir viva e humana.
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Minha maior preocupaçao atual alem de como irei pagar as contas de janeiro é “como vou fazer com meu gato se tiver que viajar por mais de 2 meses?” Eu preciso dele e ele de mim. Eu mais. Me dilacera imaginar como seriam meus dias sem a presença dele. É o meu grande amor e companheiro. Eu realmente nao sei como as pessoas nao enlouquecem ou caem em depressao sem um puro amor assim ao lado delas. Realmente, nao da pra entender.
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Recebo as 6 da manha uma mensagem da coordenaçao de uma residencia artistica que apliquei no dia anterior. Pergunta como farei com o transporte caso seja contemplada pela bolsa de ajuda de custo. Fico feliz pelo retorno rapido, tem sido assim em grande parte das chamadas que envio meu portfolio de artes. Isso me dá forças pra seguir no proposito dessa carreira. Hoje em dia, o ato forçado e infrutifero é enviar meu extenso curriculum de designer senior para alguma vaga de mercado na esperança de ter renda pra pagar minhas contas. Nao me preenche e as vagas parecem nao me quererem mais. É um misto confuso de alivio e penar e o que esta claro é que já nao flui mais como deveria. É preciso reconhecer os obstaculos e entende-los como sinais. Cansei de dar murro em ponta de faca. Cansei de tentar pertencer a lugares nos quais nao sou bem-vinda ou nao me encaixo. Ha tanto tempo que nao me demoro onde sinto desconforto, porque insisto nesse caminho para resolver questoes financeiras? Talvez ter seguido nesse caminho até entender que tinha algo errado é o que me levou a problemas dessa ordem.
Nao há estabilidade que sempre dure. Tudo é de um dinamismo absurdo. “Se perder de si mesma buscando amparo profissional nao vai te ajudar em nada” - eu penso - “a gente sempre precisa retornar à nós mesmas no fim das contas, porque a vida vai cobrar alto um dia.”
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“Eu nem sei pra quê que eu existo.”
Saí na minha rua ainda com essa frase latejando na mente, rastejando um coraçao puído, em busca de uma sessao de cinema pra espantar a miséria existencial. Encontro mais a frente um grupo de pessoas em volta de uma senhora na calçada, agonizando em lamentos chorosos. Pela calma do grupo, percebo que já devem ter acionado o SAMU. Pergunto o que aconteceu e um homem responde com pesar: “tentou se suicidar” e me aponta com os olhos a janela em cima da gente. Pulou do banheiro de uma casa que nao deveria estar nem à 3 metros do chao, na intençao de tirar a vida. Saio de lá com um aperto no peito e mais tarde penso como deve ser desesperador nao calcular nem mesmo uma altura decente para morrer. O desolamento é uma medida que nao parece ter lógica alguma até eu me lembrar daquele videoclipe “Just” do Radiohead e tudo parece mais compreensivel se voce olha sob a otica do absurdo kafkiano. Um giro de 360 nao so bota as coisas em perspectiva como oferece um alivio melhor do que tarja preta. É preciso dar um jeito, meu amigo, no absurdo e na tristeza, na riqueza e na pobreza e que nem é de dinheiro, mas de repertorio. Certas pessoas podem viver 200 anos sem nenhum pra se embasar, sem referencias culturais boas e de memorias de vida significativas, sem dialogos dos outros que te acompanham quer voce queira ou nao, monologos de si mesmo que ja viraram especie de mantra e de repente voce nota isso, como nao ter um repertorio das mentiras que contamos pra nos pra um dia poder acordar e ter algo pra jogar fora ou abraçar como boia salva-vidas? Isso me intriga pra caralho, confesso. Como dar um giro? Na mente ou no bairro…? Sigo perplexa com o dia.
A poucos metros dali, cruzo uma esquina e encontro uma viatura, policiais e vizinhos batendo boca. uma arvore grande tombada em meio à fiaçao de postes na rua. Pergunto o que houve e o policial me diz o obvio “caiu uma arvore”. Eu insisto perguntando se foi alguma rajada de vento e ele so grita pra todos que sobem a rua sairem da area de risco, me ignorando. Desço até a avenida pensando que diabos tá acontecendo quando resolvo dar as caras na rua apos quase 72h sem sair de casa: “voce bem que tenta se dar alta da bolha mas a cidade te interdita, nao tem jeito.” Sao Paulo é dose. Barulho e desvios. Nonsense agitado, que pulsa. Um ritmo que nao cede nunca, mas sempre prestes a desabar.
*Foto tirada na exposição "Lélia em nós: festas populares e amefricanidade" - Sesc Vila Mariana